MASOQUISMO



            Ao lado do masoquismo erógeno, como condição imposta à excitação sexual – prazer no sofrimento - e do masoquismo feminino, como expressão da natureza feminina, a terceira forma de masoquismo, o moral, como norma de comportamento, “foi identificada pela psicanálise como um sentimento de culpa” (p.181), na maior parte inconsciente, sem que o prazer no sofrimento que caracteriza o masoquismo erógeno deixe de estar presente nas duas outras formas, o feminino e o moral.

            Esse sentimento de culpa, por sua vez, manifesta-se nas fantasias masoquistas nas três formas; o indivíduo acha que cometeu crime de natureza indefinida a ser expiado por penas atormentadoras, uma racionalização que tem por trás “uma vinculação à masturbação infantil” (p.182).

            O pressuposto da distinção entre os masoquismos, erógeno, feminino e moral assenta-se em algumas proposições: a primeira, a de que os “processos mentais são governados pelo princípio do prazer” (p.179) e a consequente evitação do desprazer, o que tornaria incompreensível que se erigisse o sofrimento e o desprazer como objetivos paralisantes do próprio princípio do prazer, como ocorre no masoquismo.

            Nessa mesma linha, uma segunda proposição é a de que o masoquismo aparece como um grande perigo, o que não ocorre em relação ao seu correspondente, o sadismo. E, considerando, então, o princípio do prazer como um vigia da nossa vida, para além, ainda, da nossa vida mental, é preciso relacioná-lo “com as duas classes de instintos que distinguimos, os instintos de morte e os instintos de vida eróticos (libidinais)” (179).

            A terceira proposição é a de que certa visão não pode estar correta. A saber, a de uma tendência à estabilidade, ao propósito de manter baixas as excitações que fluem para o aparelho psíquico, o chamado princípio do Nirvana, de tal modo que o prazer se identifica com o rebaixamento da tensão mental e o desprazer a uma elevação devida aos estímulos, a fim de conduzir o sujeito ao estado inorgânico, um verdadeiro instinto de morte, com a “função de fornecer advertências contra as exigências dos instintos de vida – a libido – que tentam perturbar o sentido pretendido da vida” (p. 180)... “Tal visão, porém, não pode estar correta” (p. 180). De fato, há variações nas quantidades de estímulo, sendo a excitação sexual o mais notável no aumento do prazer.

            Neste diapasão, a quarta proposição diz respeito à existência de um fator qualitativo na consideração do prazer e do desprazer, para além do fator quantitativo, descrito como “tensão devida a estímulo” (p.180).”Talvez seja o ritmo, a sequência temporal de mudanças, elevações e quedas na quantidade de estímulo. Não sabemos” (p.180).

            Uma quinta proposição, ainda, nos indica que o princípio do Nirvana pertencente ao instinto de morte sofreu uma modificação e se tornou o princípio do prazer por força do instinto de vida, da libido, que se apodera de “uma cota na regulação dos processos da vida” (p.180).

            As considerações feitas nas cinco proposições acima conduzem à compreensão de que o “princípio do Nirvana expressa a tendência do instinto de morte; o princípio do prazer representa as exigências da libido, e a modificação do último princípio, o princípio da realidade, representa a influência do mundo externo.” (p. 180) Esses três princípios toleram-se mutuamente embora conflitos apareçam em decorrência dos diferentes objetivos de cada um deles: a redução da carga do estímulo, uma característica qualitativa ou um adiamento da descarga do mesmo, quando se tolera o desprazer da tensão, decorrente da postergação da descarga do estímulo.

            De todo modo, essas proposições que compõe o pressuposto relativo à questão do masoquismo levam à conclusão de que o princípio do prazer pode ser considerado o “vigia de nossa vida”. (p.181)

            As fantasias do masoquismo de tipo feminino nos homens, amiúde impotentes, levam à masturbação ou representam uma satisfação sexual em si própria. Os comportamentos da vida real deles se harmonizam às fantasias, quer como um fim em si, quer para induzir potência que conduza ao ato sexual.  Desejam ser tratados como crianças pequenas, desamparadas e travessas. As fantasias em jogo manifestam o desejo de “ser amordaçado, amarrado, dolorosamente espancado, açoitado, de alguma maneira maltratado, forçado à obediência incondicional, sujado e aviltado.” (p.181) Neste jogo, entretanto, há limites que impedem as mutilações, uma ocorrência rara, especialmente em relação aos órgãos genitais e aos olhos. Colocam-se em situação feminina de serem castrados, copulados ou darem à luz um bebê, apontando para a vida infantil. Há, pois, uma superposição do feminino e do infantil. O masoquismo feminino, no entanto, baseia-se no masoquismo erógeno, primário, no prazer no sofrimento.

            Esse masoquismo original, erógeno, tem origem na função da libido. Esta “tem a missão de tornar inócuo o instinto destruidor” (p. 183), desviando-o para o mundo exterior, com a ajuda do aparelho muscular, chamado, então, de instinto destrutivo, de domínio ou vontade de poder. Uma parte deste instinto serve à função sexual, constituindo-se no sadismo propriamente dito. Ocorre que parte deste instinto fica no organismo, e com a excitação sexual fica libidinalmente presa. É aí nessa porção presa que se encontra o masoquismo erógeno. É um resíduo componente da libido que tem por objeto o próprio eu (self) como seu objeto. O sadismo ou instinto de destruição pode regredir voltando-se para dentro, sendo introjetado ao invés de ser projetado para fora, produzindo um masoquismo secundário que se acrescenta ao original.

            Por outro lado, não há compreensão fisiológica de como a libido amansa o instinto de morte. Presume-se que haja uma fusão dos instintos de vida e de morte, uma amalgamação ampla, de modo que não há instintos de vida puros, ou instintos de morte puros. E, a partir de certas influencias pode ocorrer a desfusão dos mesmos. Entretanto, assume-se, ao sadismo primário corresponde um idêntico masoquismo.

            O masoquismo erógeno, por sua vez, acompanha as fases de desenvolvimento da libido, a oral, a anal, a fálica e a genital. Na oral, o medo de ser devorado pelo pai; na anal-sádica o desejo de ser espancado pelo pai; na fálica, a castração como um precipitado organizador; na genital, situações de ser copulado e dar nascimento, característica da feminilidade. As nádegas recebem preferência na fase anal-sádica, os seios na fase oral e o pênis na genital.

            Destarte, os masoquistas morais ofendem a si próprios, sem vínculo com a sexualidade e sem depender de outra pessoa; o que importa é o próprio sofrimento causado por poderes impessoais ou circunstâncias; o instinto destrutivo se volta contra o eu (self); apresentam séria resistência ao analista: “A satisfação desse sentimento inconsciente de culpa é talvez o mais poderoso bastião do indivíduo no lucro (geralmente composto) que aufere da doença – na soma de forças que lutam contra o restabelecimento e se recusam a ceder seu estado de enfermidade” (p.185).

            Por conseguinte, para a tendência masoquista moral o sofrimento neurótico se torna valioso. O esforço terapêutico de uma neurose pode, por sua vez, soçobrar, se “o indivíduo se envolve na desgraça de um casamento infeliz, perde todo seu dinheiro ou desenvolve uma doença orgânica perigosa” (p.186), pois, o que importa é manter um grau de sofrimento, ainda que substituindo uma forma de sofrimento por outra. Os pacientes rejeitam a possibilidade da existência de um sentimento inconsciente de culpa ao lado da consciência de culpa que conhecem. Melhor e mais apropriado é, então, falar em necessidade de punição.

            Porém, a função da consciência é atribuída ao superego e a consciência de culpa é expressão de uma tensão entre o ego e o superego. “O ego reage com sentimentos de ansiedade (ansiedade de consciência) à percepção de que não esteve à altura das exigências feitas por seu ideal, ou superego” (p.186). A função do ego é a de conciliar as três instâncias, o próprio ego, o superego e o id, tendo no superego um modelo a seguir, pois, “esse superego é tanto um representante do id quanto do mundo externo. Surgiu através da introjeção no ego dos primeiros objetos dos impulsos libidinais do id – ou seja, os dois genitores.” (p.186)

            Neste diapasão, os objetivos sexuais diretos são desviados e a relação com esses objetos, os genitores, é dessexualizada, possibilitando a superação do complexo de Édipo; mas o superego retém a força, a severidade, a inclinação para controlar e punir dos genitores introjetados, tornando-se duro e cruel contra o ego. O superego, substituto do complexo de Édipo representa também o mundo externo real, tornando-se modelo para os esforços do ego. O complexo de Édipo mostra ser, assim, a fonte do senso ético individual e da moralidade. A imagem dos pais vai sendo desligada e substituída pela dos professores, autoridades, heróis escolhidos, figuras que não precisam mais ser introjetadas. Nesta linha, o poder do Destino é a última figura, mas que pode e deve ser substituída pela dupla, ou par “Razão e Necessidade” (p.188). Em decorrência, os que se aferram a um Deus, ou Deus e a Natureza revelam prender-se, ainda, a uma dupla parental a que se vinculam por laços libidinais.

            O ser humano que sofre de masoquismo moral apresenta uma ultramoralidade da qual não tem consciência, vez que esta é supersensível e tais indivíduos são moralmente inibidos em alto grau. Percebe-se, no entanto, uma diferença entre a extensão inconsciente da moralidade e o masoquismo moral. Na primeira o ego se submete ao sadismo do superego e na segunda o ego busca punição, seja do superego, seja dos poderes parentais externos. Em ambos, porém, trata-se de um relacionamento entre ego e superego (ou poderes equivalentes) com o mesmo resultado, “uma necessidade que é satisfeita pela punição e pelo sofrimento” (p. 188). Contudo, ao passo que o sadismo aparece claramente, o masoquismo do ego tem de ser inferido do comportamento do indivíduo, já que lhe permanece oculto, inconsciente que é.

            Este conteúdo oculto do masoquismo moral pode ser esclarecido se traduzirmos a expressão ‘sentimento inconsciente de culpa’ por necessidade de punição por um pai, em razão do desejo fantasioso de ser espancado por ele, ou mesmo, se houver deformação regressiva, de ter, com ele, uma relação sexual passiva (feminina).

            Recorde-se: “A consciência e a moralidade surgiram mediante a superação, a dessexualização do complexo de Édipo;” (189). Todavia, através do masoquismo moral há uma regressão, a moralidade se torna novamente sexualizada e o complexo de Édipo é revivido, em prejuízo da pessoa e da própria moralidade. O indivíduo pode preservar algum senso ético ao lado do masoquismo, mas parte da sua consciência dilui-se em seu masoquismo, originando as tentações de pecar, com a consequente necessidade de ser punido e castigado pelo Destino. “A fim de provocar a punição deste último representante dos pais, o masoquista deve fazer o que é desaconselhável, agir contra seus próprios interesses, arruinar as perspectivas que se abrem para ele no mundo real e, talvez, destruir sua própria existência real.” (p. 189).

            O ambiente cultural pode suprimir o instinto de destruição contra os outros, provocando a volta do sadismo contra o eu (self), indo uma parte dele para o ego, intensificando o masoquismo. No entanto, ocorre que parte do instinto destrutivo que retorna do mundo externo é absorvido pelo superego, o que aumenta seu sadismo contra o ego. “O sadismo do superego e o masoquismo do ego suplementam-se mutuamente e se unem para produzir os mesmos efeitos” (p.189). Explica-se, assim, como a supressão de um instinto resulta em um sentimento de culpa e torna a consciência tanto mais severa quanto mais a pessoa se abstém de agredir os outros.

            Em conclusão, um homem que evita agredir pode parecer que está seguindo preceitos éticos e controlando seus instintos destrutivos. Mas a realidade é a inversa. A primeira renúncia instintual é forçada pelos poderes externos e é isso que cria o senso ético expresso na consciência, exigindo ulteriores renúncias ao instinto. O masoquismo moral prova a fusão dos instintos de vida e morte. Origina-se no instinto de morte e destruição” (p. 190). Entretanto, como há um componente erótico, até a autodestruição do indivíduo realiza uma satisfação libidinal.


Este trabalho é um resumo do texto “O PROBLEMA ECONÔMICO DO MASOQUISMO”, páginas 179 a 190 do volume XIX da Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, “O Ego e o Id e outros trabalhos (1923-1925)” Imago Editora. Rio de Janeiro, 1969. (Resumo apresentado ao CEP - Centro de Estudos Psicanalíticos, em 16 de outubro de 2019)
           
           
                       
           

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