TROCA E LIBERAL-SOCIALISMO

O segundo pilar da vida em sociedade é a troca. De fato, a troca é inescapável, já que não conseguimos produzir, individualmente, tudo aquilo de que necessitamos. Então, somos levados a trocar bens e serviços e acabamos por nos engajar em produzir, coletivamente, o nosso próprio viver.

Em consequencia, a história da civilização aponta para as formações sociais, caracterizadas por um regime de trabalho e um direito que o reflete, regulamentando-o coercitivamente. De sorte que a cada formação social corresponde um modo de produção dos bens e serviços. E ambos se inserem em uma mentalidade cultural que os assegura e os legitima.

Daí que as três últimas formações sociais são bem conhecidas: o escravismo, o feudalismo e o capitalismo. No escravismo o trabalho é feito pelo escravo, no feudalismo pelo servo da gleba e no capitalismo pelo trabalho assalariado. Destarte, a luta civilizatória aboliu o direito de um ser humano ter a propriedade de outro, como se coisa fosse e aboliu, também, a servidão, que considerava o ser humano um acessório da gleba de terra de propriedade do senhor feudal, acessório equivalente a um animal ou mesmo a uma plantação.

E atualmente vivemos a formação social e o modo de produção capitalista. Capital, recorde-se, é o instrumento que ajuda na produção. Uma vara que um índio pega para colher frutos que a sua mão não alcança, ou uma lança que constrói para caçar animais ou pescar são instrumentos que auxiliam a produção do viver humano e, portanto, vara e lança representam o capital disponível, neste exemplo do índio. O que caracteriza o capitalismo é o direito de propriedade privada dos meios de produção, associado à liberdade de contratar o trabalho, remunerando-o mediante um salário pago ao trabalhador.

Outrossim, no atual estágio de desenvolvimento do capitalismo, a produção se dá pelo regime de empresa, em que o empresário, empreendedor, ou a tecnoestrutura empresarial organiza os fatores de produção: contrata o capital fixo e o variável, prédios, máquinas, recursos financeiros, profissionais da administração, a tecnologia disponível e necessária, as marcas e as licenças, os trabalhadores, etc. a fim de produzir bens e serviços e lança-los no mercado, procurando beneficiar-se da diferença entre o custo de produção e o preço de venda, o lucro.

O estudo das formações sociais se dá sob os vários aspectos desenvolvidos pelas ciências humanas, tais o sociológico, o econômico, o político, o antropológico, o filosófico, o jurídico. E cada uma dessas abordagens traz uma compreensão que auxilia o entendimento e o conhecimento delas. Uma abordagem bastante interessante é a desenvolvida por Marx e Engels, propondo a cientificidade da lei do materialismo histórico e dialético, destinada a explicar a passagem de uma formação social à que lhe sucede: do escravismo ao feudalismo, deste ao capitalismo ea que lhe sucederá, o socialismo.

Todavia, alguém poderá advertir que o socialismo já foi tentado e fracassou com a dissolução da União Soviética em 1991, vencida pelo capitalismo, a significar o fim da história, o modo de produção mais perfeito e a formação social definitiva. Contrastando esta posição, outros podem alegar que o chamado socialismo real não passou de uma ditadura de partido único, o comunista, nada tendo a ver com a lei do materialismo histórico e dialético.

Neste ponto, portanto, vale relembrar sinteticamente o que propõe esta lei. Ela diz que a passagem de uma formação social para outra formação social é consequencia da resolução de uma contradição dialética entre dois pólos: o das forças produtivas e o das relações de produção. Por forças produtivas, base material da sociedade ou infraestrutura, entenda-se o conjunto dos trabalhadores mais a ciência e a técnica disponível em determinado estado da arte, qual seja em algum ponto do estágio de seu desenvolvimento. E por relações de produção compreenda-se a mentalidade cultural expressa pelo direito positivo.

Destarte, o desenvolvimento da contradição dialética entre as forças produtivas e as relações de produção tem início quando surge uma novidade dentro do pólo das forças produtivas. Esta novidadade se expande até contrariar as relações de produção, vale dizer, até contraditar o direito positivo que sustenta e legitima o modo de produção de determinada formação social. A contradição se torna aguda e se resolve sempre, daí ser considerada uma lei socioeconômica e político-jurídica, a favor da novidade que se estrutura como uma nova formação social e um novo modo de produção conduzido por uma nova classe social.

Exemplifico com a passagem do feudalismo para o capitalismo. Parece-me que a novidade foi o comércio praticado nos vilarejos pelos chamados vilões, pessoas à margem da sociedade feudal, já que o comércio era considerado indigno da nobreza, cuja renda e riqueza dependia da terra trabalhada pelos servos da gleba. Os vilarejos passaram a se chamar burgos, os vilões burgueses e, após três revoluções, a gloriosa da Inglaterra de 1688, a da independência americana de 1776 e a francesa de 1789 a burguesia apeou a nobreza do poder, ampliou os territórios comerciáveis formando os Estados Nacionais Modernos e Soberanos e revestiu o modo de produção capitalista mediante constituições jurídicas escritas, legitimadas pelo contrato social estabelecido pelo povo de cada nação. Consagra-se, assim, a propriedade privada dos meios de produção e a liberdade de contratar apoiada em igualdade jurídica formal de todos perante a lei.

Observe-se, ainda, entre parênteses, que o capitalismo esteve associado à liberdade individual de iniciativa econômica em um ambiente de liberdade públicas e proteção da autonomia individual constitucionalmente garantida. Mas a China atual está mostrando que pode haver capitalismo autoritário, fazendo conviver o capitalismo e a alocação dos recursos via mercado com ditadura política e ausência de liberdades públicas e garantia de respeito aos direitos humanos fundamentais.

Muito bem. Fechado o parênteses a respeito do capitalismo ditatorial chinês, é de se perguntar, então, se é possível visualizar alguma novidade no interior das forças produtivas capitalistas capaz de contrariar o direito de propriedade dos meios de produção. Se a resposta for positiva estaremos assistindo o início do desenvolvimento de uma contradição dialética que terminará por ensejar um novo modo de produção e uma correspondente nova formação social, com a hegemonia de uma nova classe social.

Salvo melhor juízo, a novidade capaz de contrariar a propriedade dos meios de produção, a privada do capitalismo privado nas democracias, a estatal do capitalismo de Estado comunista, ou ainda a privada aceita pela ditadura política comunista chinesa ( a do capitalismo comunista) é o software livre, não apropriável, seja por particulares, seja pelo Estado. Ele não é nem propriedade privada, nem propriedade estatal, pública. Se se quiser, o software livre é uma propriedade social, de todos, propriedade socialista. Se se quiser ainda, os novos vilões são os hackers, porque são os que melhor dominam o novo meio de produção. Quanto ao novo modo de produção e à nova formação social que lhe corresponderá, claro, estão em aberto.

Isto tudo, se realmente eu estiver certo de que o software livre possibilitado pela Internet represente uma novidade, tal qual o comércio representou para a queda do feudalismo e da nobreza.

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